Há uma imagem que me acompanha há muitos anos. Vejo fios de luz que saem pelos buraquinhos dos estores meio corridos. Cheira a colchão forrado a plástico. Plástico lavado várias vezes, mas ainda com um leve cheiro a urina de criança. É hora da sesta e estou na sala dos quatro ou cinco anos no infantário.
Várias vezes, quando fecho os olhos, vejo isto e sinto um misto de nostalgia e liberdade. A sensação é prazerosa e assemelha-se a um regresso ao ventre materno. É como se ainda estivesse ali, como se nunca tivesse saído dali. A minha essência talvez ainda por ali more, talvez tenha ficado por lá ou nunca tenha de lá saído. Dali e da casa da minha bisavó. Onde estou com ela, com a minha tia-avó e com a Amélia. O cheiro aqui é a café acabado de fazer na antiga cafeteira e a sabonete "Feno de Portugal".
A minha bisavó velhinha está junto à lareira - não em frente, porque faz muito calor, mas ao lado da lareira para não se constipar - faz fatinhos de malha a uma só agulha para as minhas bonecas. Faz muitos fatinhos e ensina-me a fazer malha como ela.
A minha essência salta entre a sala da sesta no infantário, a casa da minha bisavó e a quinta dos meus avós.
Na quinta, cheira às sopas de leite do meu avô, feitas com Ovomaltine e um paposeco com maminhas. Lá, estou em cima de uma árvore ou a andar de bicicleta à roda da casa ou a dar festinhas aos imensos gatos que por ali habitam.
Há nêsperas e peras nas árvores, uvas morangueiras e glicínias que cobrem o chão e fazem túneis aromáticos e doces.
Quero voltar aos lugares da minha infância, quero ficar por lá e não tornar ao mundo dos adultos. Quero os túneis de flores roxas e o sabor das uvas que espremo para a garganta. Quero ouvir o meu avô a comer as sopas de leite e sentir o pêlo macio dos gatos nas mãos. Quero fazer malha com que vestir as minhas bonecas, quero os fios de luz a entrarem pelos buraquinhos dos estores na sala da sesta. Quero ser pequenina e não saber nada da vida. Quero só senti-la!
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Vá lá, digam qualquer coisinha...
...por mais tramada que seja...