Cheira a Primavera. Estranho ser o mesmo cheiro da quinta, aquele que sinto aqui da minha janela em plena cidade. Cheira a flores e a terra. A gatos, a vento e a inocência. À inocência que me recorda os meus saltinhos e subidas às árvores de pequena. Quando inspiro é como se a infância me entrasse narinas adentro; é como se a quinta ainda existisse; como se tu e o avozinho ainda por aqui andassem.
As andorinhas já rondam a sua casa de férias na minha janela. Ainda não entraram, mas rondam-na. Como no dia em que nos deixaste que se puseram em fila pousadas no meu parapeito. Nunca mais fizeram isso. Só ali pousaram quando nos deixaste. E hoje, esvoaçam por aqui e tu já não estás. Foste-te em cinzas e as andorinhas continuam a existir. E Primavera voltou sem a tua permissão. Que ousadia. Como pode ela voltar assim quando já não estás?
Tenho saudades tuas como tenho da minha infância. Levaste-a contigo, sabes? Os ensinamentos que me deste ficaram desenraizados com a tua partida. Perderam a origem, assim, de um dia para o outro. E agora? Para onde foi o sentido de tudo isto? Ficou em cinzas também?
Os bolos, o pão, a malha com duas agulhas, o chá e o café que me ensinaste a fazer sentem a tua falta. Eu sinto a tua falta. Sinto tanto a falta de fazer a tarefa que me atribuíste por eu ser a mais velha dos mais novos e a mais nova dos mais velhos. O café na cafeteira, do qual nunca me livrei porque nunca deixei de ser a mais velha dos mais novos e mais nova dos velhos. Porque não me pedes agora para ir fazer café?
Quem fará agora o Molotov com doce de ovos que adoçaram tantos dos meus dias? Quem? Diz-me. Quem me diz "Estás tão bonita" ou "Estás um mulherão", mesmo sem ser verdade, nos dias em que me sinto um trapo e as tuas palavras me traziam de volta a sensação de ser gente?
No outro dia sonhei que te queria abraçar pela última vez sem que soubesses que era a última vez. Só eu o sabia e, na verdade, nem sequer nos abraçámos pela última vez…
Ao avozinho ainda agarrei na mão uns dias antes de se ir embora e o cheiro da pele dele ficou por aqui uns tempos. Se fechar os olhos e me concentrar, ainda hoje consigo sentir o cheiro dele a sabonete.
Quero-vos aos dois de volta. Não só em sonhos, mas de verdade. Quero ver-vos dançar à minha frente e poder tocar-vos e poder dizer que vos amo…
Como é possível continuar a haver Primavera se já não estás cá? Que ousadia.
Que ousadia, né?
ResponderEliminarGostei muito do texto, senti tudo, vi , percebi, lágrimas
Beijinho