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Mensagens

A mostrar mensagens de 2018

#metoo ou eu também já vi muita coisa

Já fui bastante assediada, especialmente até aos trinta, trinta e poucos. Acho que, por isso, fui desenvolvendo uma capacidade que me permite notar situações de assédio, ou de simples interesse sexual, à distância. Não só quando sou eu a visada, mas também quando são outras pessoas. Normalmente, reparo no(a) assediador(a) e no(a) assediado(a). Vou contar-vos uma história que aconteceu comigo quando eu tinha uns quinze ou dezasseis anos. Nessa altura eu frequentava amiúde as matinés de uma discoteca aqui da terra. Era miúda e era assim que passávamos as tardes chatas de domingo. Um dia estava com uma amiga à porta da dita discoteca e houve um puto, mais ou menos da minha idade, que me fez uma proposta: pagava-me uma bebida lá dentro se eu curtisse com ele naquela tarde. Eu, que durante a adolescência tinha fama de antipática e petulante (creio que esta última característica se devia essencialmente à minha altura e timidez que, juntas, me faziam parecer uma pessoa petulante), mandei-

O barulho das fraldas

O meu filho já me passou em altura. Pouso a cabeça no seu ombro sem a baixar. Olho-o nos olhos de frente, como a um adulto. As longas pernas, agora com pêlos a tornarem-se escuros, são as mesmas que, em tempos, ainda não andavam e se mexiam em simultâneo com os braços, enquanto lhe mudava a fralda. É um homem aquele bebé que viveu em mim oito meses e pouco e que deu um grito quando me saiu das entranhas. Um homem que enche a cama e a quem vou, à noite, tapar os pés que teimam em sair debaixo dos lençóis. É um homem o bebé que, nas manhãs de fins-de-semana, se vem deitar ao meu lado; a quem tento envolver todo num abraço gigante; a quem beijo a testa e cheiro o cabelo; e a quem dou palmadinhas no rabo, pensando que ali ainda vou encontrar o barulho das fraldas.

Vida eterna

Passou algum tempo desde a última vez que por aqui escrevi, mas não morri. Continuo viva. Andei meio moribunda por uns tempos. Hoje estou melhor, sem estar completamente curada. Uma depressão entrou-me cérebro adentro, matou-me os sonhos e adormeceu-me a vontade de viver. Desejei enfiar-me no escuro dos lençóis para a eternidade, quis morrer muitas vezes, pensei em formas de terminar com tudo. Fui ao médico, aos médicos. Comecei a tomar medicação e voltei a sonhar à custa dos comprimidos para dormir. Agora já não tomo esses, estou apenas com os que me ajudam a levantar da cama, a encarar o dia e a minimizar os problemas. Deixei de tremer e de suar de nervos, a ansiedade foi-se dissipando e só volta de vez em quando. E voltei a sonhar sem comprimidos. Ontem sonhei com o meu avô. Às vezes, ele vem visitar-me nos sonhos como que para me matar as saudades. Chega devagarinho e toma conta da história. Faz com que eu queira estar apenas na sua companhia como se, no sonho, eu saiba que

A sesta

Às vezes ainda sinto o cheiro do colchão forrado a plástico impermeável azul do infantário. Volto à sala dos quatro anos, onde, na semi-obscuridade, tento dormir. Vejo as persianas descidas quase até acima e conto os quadradinhos de luz que saem das duas últimas filas dos estores que ficaram por fechar. Fixo os olhos na luz e na vontade de sair para rua num dia bonito de Verão. Estou aprisionada naquela sala transformada em dormitório infantil e sinto, hoje, a mesma impaciência que sentia pelo fim da hora da sesta. A Preciosa e a Isabel cochicham junto à porta, enquanto controlam quem ainda não dorme. Estão sentadas nas cadeiras minúsculas e rodeadas por um clarão de luz. Invejo-as por ninguém as obrigar a dormir, por estarem ali na conversa, ao contrário de mim que estou aprisionada no colchão com a cara colada ao plástico azul. Tento descolar-me do colchão, mas o movimento da minha cabeça denunciar-me-ia às educadoras. Olho para o meu colega do lado, também de quatro anos, que do

"Bom dia e as melhoras!"

IPO - 9h da manhã Indicam-me a sala de espera da radiologia. Há uma televisão que vai distraindo as pessoas sentadas, alinhadas, de frente para ela. Sento-me no sofá por baixo da televisão e de frente para os espectadores pouco atentos às notícias da manhã. O ar que se respira nas salas de espera do IPO é sempre um pouco solene. Vive-se a incerteza e espera-se o desconhecido. O silêncio e as palavras ditas em murmúrios impregnam o ambiente de uma musicalidade suave. Como se fosse o som de fundo de uma floresta imergida na fatalidade perene. Chamam-me para o exame. Sigo a "operacional" - como chamam hoje às funcionárias dos hospitais - até ao gabinete onde me devo despir da cintura para cima e vestir a bata branca com centenas de IPOs estampados. Faço o que me mandam e tiro o piercing do umbigo. Tiro o piercing do umbigo sempre que sou irradiada. Tenho a sensação que o metal do brinco pode projectar as radiações para lugares inusitados se não o fizer. Talvez seja uma cr

Por entre livros e árvores

Estou sentada no sofá do supermercado junto aos livros. Incrivelmente este supermercado tem um sofá para quem vê livros. Confesso que sou uma parasita das livrarias, daquelas que lêem muitos pedaços de literatura e raramente compram alguma coisa. Namoro livros durante meses, às vezes anos e só os compro quando já se criou uma certa intimidade entre mim e eles, ou entre mim e os seus autores. Também compro por impulso, mas é mais raro agora que tenho menos dinheiro para consumismos. Hoje, levo comigo para o sofá o Lobo Antunes e o Rodrigo Guedes de Carvalho. Vou lendo pedaços de um e de outro. Salto capítulos, reviro os livros e escolho páginas aleatórias na tentativa de entrar nas histórias e nas palavras. Mergulho em parágrafos que me marcam, afundo-me em frases que me fazem eco. Volto à superfície. Por momentos, desvio o olhar dos livros para perceber o que se passa à minha volta. Entram e saem pessoas do supermercado. Há um homem que passa de guarda-chuva em punho como se fos

Dos blogues bons

Sigo o escrever é triste  há algum tempo. Hoje deu-me a conhecer este vídeo. Vejam. Vale muito a pena. E leiam o post do "escrever é triste". Este e outros.

Silêncio

Ando a 500km/h por dentro, mas a vida passa-me a correr e não consigo acompanhá-la. Estou lenta, quase paralisada. E, no entanto, cá dentro tudo se move em modo acelerado. Preciso de parar e experimentar a calma. E o silêncio. Preciso tanto do silêncio na minha cabeça... Desligar os fusíveis para interromper as ligações que me viajam pelos neurónios, incendiando-os e apagando-os de seguida em estado de completa exaustão.