Avançar para o conteúdo principal

O bailado

Faltava cerca de meia hora para o sol se pôr sobre as águas do Atlântico.
Na esplanada da praia, conversavam, um em frente ao outro. Ela, de top branco semi-decotado e casaquinho leve e escuro aberto, a cair-lhe dos ombros, parecia não sentir o frio que o vento trazia. Ele, de camisa aos quadrados e barba da moda como a de quem não segue modas, mantinha os pés descalços, um na areia e outro sobre o banco corrido, enquanto enrolava cigarros e a ouvia.

No meio da conversa, ela deitava-lhe olhares profundos e deleitados ao mesmo tempo que afastava o cabelo para trás dos ombros ou passava a mão pelo pescoço nu. O nervosismo que tentava segurar entre o esforço por dar uso às mãos, ao olhar, ou às palavras, era visível da mesa em que eu me sentara. 
Os copos à sua frente já se encontravam vazios há algum tempo. Não havia a possibilidade de bebericarem de vez em quando. Talvez até já se tivessem esquecido desse pormenor que os poderia ajudar a filtrar a tensão do momento e torná-la menos incomodativa porque mais ébria.
Do sítio em que me situava apenas conseguia seguir as expressões dela, já que a ele, só o podia ler pelos movimentos das costas e por vezes vislumbrar-lhe o perfil.

O sol ia descendo até ao mar e mudando as cores que iluminavam o rosto irradiante dela. Não lhe percebia as palavras, mas também não me interessava ouvir-lhes a conversa. Só o tom da sua voz e as expressões do seu rosto e corpo me hipnotizavam. Queria acompanhar aquele firt de fim de dia, sem, porém, o querer conhecer na íntegra. Estava fascinada pela expressão corporal da atracção. Pareciam-me dois bailarinos numa dança de acasalamento perfeita. Não podia perder um segundo daquele bailado, por isso comecei a observá-la através do reflexo de um vidro, para que não se sentisse incomodada e não estragasse a dança. 
Quando o sol já quase tocava as águas no horizonte, ele levantou-se e foi falar com duas raparigas numa outra mesa por detrás de mim. De mãos a agarrar as pontas da mesa e posição descontraída de galã, conversou animado por pelo menos dez minutos com as duas raparigas que ela não conhecia. Dez minutos que ganharam a eternidade reflectida nos olhos dela que, enquanto esperava pelo regresso do rapaz, disfarçava a força que o olhar teimava em fazer para se prender na conversa do companheiro e afastava-o do seu objecto de desejo, dirigindo-o para o sol, para o mar e para a areia, provavelmente não vendo nada do que tentava observar. 
Pegou no isqueiro que ele deixara sobre a mesa e rodou-o por entre os dedos como se fosse a mão do dono do objecto, talvez imaginando o toque e o entrelaçar de dedos que o inicio da noite lhe poderia vir a proporcionar.

Findos os dez minutos, ele veio buscá-la para a levar para dentro do café, para um local mais recolhido do frio, mas também do meu olhar. 
Fui-me embora a imaginar o final daquela dança. Enquanto seguia de regresso ao carro, o sol pousou finalmente sobre o mar e acabou por desaparecer para lá das águas, como o pano a cair no final de um espectáculo. A luz ficou ainda mais bonita, mas o meu bailado infelizmente acabou.

Comentários

  1. Onde está, neste episódio, a tensão (este termo presta-se à malícia, mas não tenho equivalente pertinente): o discreto deslizar de dedos pelo decote, a mão distraída que se esquece e não se furta ao contacto do corpo alheio?
    "... passava a mão pelo pescoço nu." é cru. E breve. A imagem do isqueiro ("Pegou no isqueiro que..."; neste mesmo parágrafo, "inicio" será porventura "início"?) compõe, mas não seduz.
    É este o bailado erótico destes amanhãs que cantam, uma dança sem toque?
    Entretanto, contrastando com o softcore, eis uma notícia sobre a explosiva violência feminina.
    Obrigado por ter lido.

    ResponderEliminar
  2. Ups, faltou-me o "ter"...

    Obrigada também por ter lido, amorenadobaixote!

    ResponderEliminar

Enviar um comentário

Vá lá, digam qualquer coisinha...
...por mais tramada que seja...

Mensagens populares deste blogue

Vejam só o que encontrei!

Resumindo :  Licenciatura em marketing (um profissional certificado); Gosto pela área comercial (amor cego que se venda barato);  De preferência, recém-licenciado (cabeça fresquinha e sem manhas); Com vontade de aprender (que aceite, feliz, todas as "óptimas" condições de trabalho que lhe oferecem, porque os ensinamentos não têm preço); Disponibilidade imediata (já a sair de casa e a arregaçar as mangas);  Carta de condução (vai de carro e não seguro, como a Leonor descalça do Camões);  Oito horas de trabalho por dia e não por noite (muito tempo luminoso para aprender, sem necessidade de acender velas). Tudo isto, a troco de: Um contrato a termo incerto (um trabalho p'rá vida); 550€ / mês de salário negociável (uma fortuna que pode ser negociável, caso o candidato seja um ingrato); Refeições incluídas (é melhor comer bem durante as horas de serviço, porque vai passar muita fominha a partir daquela hora do dia em que tiver de

O engano

O meu homem, enquanto estende a roupa (sim, cá em casa a roupa é cena dele. Somos estranhos, eu sei!), ouve música. Aliás, ele ouve sempre música, mas hoje, enquanto estava a ouvir música e a estender a roupa e eu a arrumar a loiça do almoço (sim, apesar do moço tratar da roupa, eu também faço umas coisitas cá por casa. Sim, eu sei, parece que somos mesmo estranhíssimos!), pôs os Pink Floyd a tocar. Ao som dos Pink Floyd, comecei a pensar que hoje há pouca cultura que faça as pessoas pensarem como por exemplo os Pink Ployd faziam; que conteste os poderes; que ponha em causa as ditas verdades universais; que cause indignação e contestação. Vivemos na sociedade do engano. Julgamos que temos liberdade, quando somos nós mesmos que restringimos a liberdade, calando-nos. Já não defendemos causas, mandamos umas bocas e ficamo-nos por aí. Os poderes estão instituídos e aceitamo-los, pura e simplesmente, sem um ai realmente sentido. Encolhemos os ombros e distraímo-nos com outras coisas par

Apneia

 Sempre esta coisa da escrita... De há uns anos para cá tornou-se uma necessidade como respirar. Tenho estado em apneia, eu sei. Não só, mas também, porque veio a depressão. Veio, assim, de mansinho, como que para não se fazer notar, instalando-se cá dentro (e cá fora). Começou por me devorar as entranhas qual parasita. Minou-me o corpo e o cérebro, sorvendo-me os neurónios e comendo-me as ideias, a criatividade e a imaginação. Invadiu-me a mente e instalou pensamentos neuróticos, medos, temores, terrores até. Fiquei simultaneamente cheia e vazia. E a vontade de me evaporar preencheu-me por completo, não deixando espaço para mais nada. Não escrevia há meses. Sinto-lhe a falta todos os dias. Mas havia (há) um medo tão grande de começar e só sair merda. E, no entanto, cá estou eu a escrever de novo. Mesmo que merda, a caneta deslizou sobre o papel e, agora, os dedos saltam de tecla em tecla como se daqui nunca tivessem saído. O olhar segue os gatafunhos, o pensamento destrinça frases e e

A Língua do Michael Jordan

O ídolo (imagem retirada da Internet) Um dia destes, enquanto assistia a um treino do meu filho, reparo que ele está sempre de língua de fora... Ele não é daqueles miúdos que põem a língua de fora quando escrevem ou quando fazem qualquer coisa que lhes exija um pouco mais de concentração, por isso estranhei! No intervalo que o treinador lhes dá para irem beber água, ele chega-se ao pé de mim e diz: -Viste, mãe, estive de língua de fora como o Michael Jordan? (Para quem não conhece, o Michael Jordan, o mocinho aqui ao lado, foi um dos melhores jogadores de basquetebol do mundo e uma das suas características era jogar com a língua de fora.) O meu filho estava todo orgulhoso a imitar o Michael Jordan, sentia-se o melhor jogador do mundo à custa da sua linguinha ao vento, mas eu (estúpida!) estraguei a sua alegria, com esta minha triste saída: -Pois, mas se não pões a língua para dentro ainda a mordes se te derem um encontrão, além de pareceres um tontinho... Arrependi-me da parte do