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Bichinhos-de-conta e joaninhas

Passo por aí e arrepio-me. 
O matagal, onde outrora foi o teu jardim cheio de rosas e laranjas e limões, e o anúncio da Remax a dizer que te vendem a casa...

Volto aos dias em que andava por aí a enrolar bichinhos-de-conta. Perseguia-os com os dedos até que se enrolassem e ficava à espera que se voltassem a desenrolar para lhes poder tocar de novo. Às vezes, pegava em vários ao mesmo tempo e escondia-os na palma da mão. Largava-os no chão e observava como reagiam todos juntos. Tentava adivinhar-lhes o lugar da cabeça. Passava horas entretida com os bichinhos e a viajar dentro de mim. 

Depois partia para as formigas ou para as joaninhas... E tu dizias-me: "Joaninha voa voa que o teu pai foi a Lisboa". E a minha cabeça voava para Lisboa à procura do meu pai que sabia noutro lado. Imaginava-o em Lisboa só para te fazer a vontade. 

Tentava pegar nas joaninhas e fazê-las abrir as asas para que voassem a caminho da tua Lisboa. Ou para outro lado qualquer. Achava-as feias de asas abertas, porque deixavam de ter o corpo redondo e porque havia bolinhas pretas que se partiam em duas. 

Depois tu ias lavar as mãos para o almoço e mandavas-me fazer o mesmo. Lembro-me do cheiro a sabonete das tuas mãos...
Tínhamos a refeição que a Amélia preparava segundo as tuas receitas e indicações. Adorava a carne assada com arroz, os bolos e tudo o que ela fazia. Perguntavas-me: "Gostas da carne assada da tiazinha, não gostas?". Respondia-te que sim, sabendo que a carne assada era mais da Amélia do que tua. 
E falavam uma com a outra. Tenho as vossas vozes nos meus ouvidos. Serena a tua e a da Amélia espevitada. Eram como uma música de fundo dos dias em que passava em tua casa, só interrompida pelas badaladas do relógio de pé antigo que não se podia tocar para que não parasse.

Acabado o almoço, preparavas a bolsinha negra com o estetoscópio e ias à tua vida de médica. Eu voltava para as joaninhas e para os bichinhos-de-conta. Arranjava-lhes família e contava histórias com as suas vidas. Nunca os matava. Só às formigas, porque te invadiam a cozinha no Verão. Pedias à Amélia para pôr uns recipientes com água por debaixo dos pés da mesa para elas não subirem, como arranjavas tudo o que se estragava com fita adesiva. Os óculos, a caneta, o candeeiro. A tua fita adesiva era tão mágica quanto o teu olho clínico que acertava em todas as maleitas que nos atacavam. 

Faz-me falta ligar-te a perguntar se posso dar ben-u-ron ao J. de seis em seis ou de oito em oito horas. Faz-me falta o teu conselho certeiro sobre as coisas médicas e sobre o emprego que devo arranjar; as conversas em que davas a tua opinião e dizias: "Fazes assim e assado", com a certeza que te era característica. Como se fosses dona da razão e como se tudo corresse bem se seguíssemos as tuas indicações. Como a carne assada da Amélia que saía sempre bem.

Faz-me falta o cheiro a sabonete das tuas mãos, o do teu café da manhã e o som do borbulhar na cafeteira quando estava quase pronto. Fazem-me falta os teus cuidados, a tua voz e as badaladas do relógio antigo.

Passo por tua casa e apetece-me entrar com a chave que me deste para não teres de vir ao portão. Quero entrar e encontrar as joaninhas e os bichinhos-de-conta e a ti, sentada na sala que está mais quente à tarde, ao lado do candeeiro que se segura direito pela fita adesiva mágica.

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