No outro dia, o meu filho conheceu-se in utero. Mostrei-lhe a ecografia e o vídeo que se gravou naquela altura. Tinha cinco meses de gestação e nas imagens em tons dourados encontrou-se quando ainda um feto.
Antes do vídeo e da ecografia que lhe mostra o rosto, tentou encontrar-se nas ecografias a preto e branco e pouco perceptíveis, desde o feijão até à última que fiz, já quase um homenzinho e pronto a irromper por mim afora.
Teve pudor da nudez e sentiu um assalto à sua privacidade quando a imagem nos confirmou o seu sexo. Viu o próprio coração bater e ouviu-o, como se naquele momento se revisse num outro.
Pela primeira vez, teve a noção de que veio por engano, que se não tivesse uma mãe maluca que se julgava imune às gravidezes, não estaria aqui e não seria ele.
Percebeu que só o descobri já no segundo mês de gravidez e que foi um xixi numa espécie de caneta que mo revelou.
"E o que pensaste, mãe?", "o que sentiste?", quis saber.
Foi estranho contar-lhe a surpresa, a dúvida perante um bebé que não foi feito de propósito e muito menos programado; e vê-lo tomar consciência da sua existência fortuita e de que a vida é condicionada pelos caminhos que seguimos e, em simultâneo, pelos caminhos que não seguimos; a percepção de ser um acaso e de que esse acaso o fez assim, ele e não outro. Compreendeu tudo isto ao ver-se dentro de mim, ainda incompleto. Compreendeu e inquietou-se com a possibilidade de nunca ter chegado a existir se eu não tivesse acreditado numa ideia improvável.
E eu senti-me culpada por não o ter adivinhado dentro de mim mais cedo; por não o ter feito de propósito; por não o ter nunca tentado gerar antes de o saber já um feijão que esticava aquilo que viriam a ser as suas pernas, hoje longas e atléticas.
Desejei ardentemente poder dizer-lhe que o programei na minha vida, como se isso o fizesse sentir com maior precisão o amor que sinto por ele e que apareceu no momento em que vi a risquinha rosa na espécie de caneta, e que foi crescendo à medida que o fui descobrindo ainda feijão, em imagens pouco perceptíveis a preto e branco, ou em tons de ouro com um coraçãozinho acelerado.
Desejei apagar-lhe a descoberta de que a vida é assim, incerta e feita de desvios, que os caminhos que percorremos nos ditam o futuro e que os caminhos dos outros também podem determinar os nossos. E que o acaso pode pôr em causa tudo, até a nossa existência.
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