Avançar para o conteúdo principal

Mensagens

A mostrar mensagens de junho, 2017

Colecciono manhãs da minha janela

Quem vive de dia não sabe que o nascer do sol é muito mais belo do que o seu pôr. Eu, que me deito de manhã e vivo de noite, vejo-o mal ele acorda. Colecciono cada amanhecer, cada raio de luz que espreita ainda timidamente o horizonte. Roubo aquele momento para dentro de uma objectiva e vou sonhar com as manhãs que não presencio. Como se pudesse reviver aquilo que acabo por não chegar sequer a viver. Mas que levo para os meus sonhos e que fica comigo até ao acordar... já o sol está alto e sem beleza digna de retratos. Perco todo o percurso até se fixar lá em cima a iluminar-nos, mas guardo o mais belo de todo o seu caminho, quando ainda espia e se decide se há-de ou não nascer e agraciar-nos com um novo dia. Vejo-o sem que me veja, em tons laranja, da minha janela. Todos os dias.

O Pedro e os Pedros

A primeira morte que me devastou foi a morte de um colega de escola. Eu tinha uns seis ou sete anos. Lembro-me de a minha mãe me dar a notícia. "O Pedro morreu", ecoou-me na cabeça várias vezes. O Pedro tinha a minha idade e tinha ido de barco pescar para o rio com o avô. Parece que o Pedro caiu do barco e que o avô foi atrás dele para o tentar salvar. Ficaram lá os dois. O Pedro tinha uma irmã mais nova, loirinha como ele, e uns pais de aspecto feliz.  Lembro-me que me fartei de chorar pela morte do meu colega e por, pela primeira vez, ter tido consciência da mortalidade das crianças. Hoje, passados trinta e tal anos, volto ao Pedro e à sua morte estúpida. Volto ao Pedro levada pelos Pedros que têm morrido no incêndio de Pedrógão Grande. Mas já não volto só ao Pedro, volto aos pais dos Pedros que, ou os viram morrer, ou que morreram com eles a tentar salvá-los. A imagem do avô afogado ao lado do neto transforma-se na imagem dos pais e dos filhos dentro dos carros

In utero

No outro dia, o meu filho conheceu-se in utero . Mostrei-lhe a ecografia e o vídeo que se gravou naquela altura. Tinha cinco meses de gestação e nas imagens em tons dourados encontrou-se quando ainda um feto. Antes do vídeo e da ecografia que lhe mostra o rosto, tentou encontrar-se nas ecografias a preto e branco e pouco perceptíveis, desde o feijão até à última que fiz, já quase um homenzinho e pronto a irromper por mim afora. Teve pudor da nudez e sentiu um assalto à sua privacidade quando a imagem nos confirmou o seu sexo. Viu o próprio coração bater e ouviu-o, como se naquele momento se revisse num outro. Pela primeira vez, teve a noção de que veio por engano, que se não tivesse uma mãe maluca que se julgava imune às gravidezes, não estaria aqui e não seria ele. Percebeu que só o descobri já no segundo mês de gravidez e que foi um xixi numa espécie de caneta que mo revelou. "E o que pensaste, mãe?", "o que sentiste?", quis saber. Foi estranho contar-

A escola pode não ser um lugar escuro

Daqui Sei que digo aqui, muitas vezes, mal do ensino em Portugal. Há coisas que me revolvem as entranhas; que podiam melhorar muito; que não funcionam mesmo nada bem... Mas também há coisas boas a assinalar como a que aconteceu hoje de manhã com a turma do meu filho. Esta manhã, a professora de Português levou a turma pelas ruas da cidade para fazer perguntas à população sobre como escrever correctamente em português. Os alunos levaram uma lista de frases. Cada frase tinha uma palavra escrita da forma correcta e da forma incorrecta e as pessoas tinham que escolher a que estava bem. Os miúdos divertiram-se imenso, aprenderam e até ensinaram algumas dessas pessoas a escrever, e a falar, melhor. Foi uma actividade simples, sem custos acrescidos e que talvez tenha sido muito mais produtiva do que uma aula com a turma fechada dentro da sala. A única coisa que tenho a apontar é estes miúdos terem de aprender a escrever com o Acordo Ortográfico, que é uma perfeita aberração, mas ni

Era só isto!

"Malak, uma menina síria de 7 anos, fugiu da guerra na Síria com sua família. Eles passaram por uma perigosa jornada pelo Mediterrâneo. Nenhuma criança deveria passar por isso." Era só isto!

Injustiça e intolerância

A tentativa de mostrar que se é justo cai amiúde na intolerância. Parece um contra-senso e, até há bem pouco tempo, eu pensava que isto não existia. Só após ser mãe e ter um filho que faz algumas coisas bem feitas e tem (perdoem-me a ausência de modéstia neste capítulo, mas não consigo dizer isto sem parecer que me estou a gabar, quando, de facto, não estou, mas parecerá sempre que sim) uma inteligência e cultura acima da média, é que percebi que isto era possível de acontecer. Os modelos estilizados, que as pessoas seguem cegamente e, para com os quais, se abstêm de usar o pensamento crítico, potenciam a intolerância.  Imaginar alguém que é bom aluno é encaixá-lo no sector dos famosos marrões. Os ditos "marrões" são sempre relacionados com quem estuda horas a fio, é exemplarmente bem comportado e acata todas ordens sem as colocar em causa ou sequer questionar. Encontrar alguém que é bom aluno, que não estuda a ponta de um corno e que tem maus comportamentos p

Cobardia

Da imensidão de coisas que me afligem, a cobardia é daquelas que encabeça a lista. A mentira, a ocultação de verdades essenciais, a transferência de culpas para quem é mais fraco ou está menos protegido, a falsidade e a não assumpção dos próprios erros são características que estão de mãos dadas com a cobardia. Ser cobarde é trazer tudo isto no mesmo pacote. É ausência de maturidade, de seriedade, de humildade, em quem supostamente devia ser superior aos próprios erros ao ponto de os assumir e tentar corrigir com franqueza. A cobardia atinge essencialmente os invejosos, os que não são abonados por um amor-próprio suficiente que lhes permita reflectir sobre os próprios actos e sobre aquilo não dominam tão bem. O erro é inato ao Homem. Todos erram, todos falham. Mas só evolui quem ultrapassa as próprias fraquezas, assumindo-as e corrigindo-as e tomando-as como um caminho para a evolução pessoal. Os outros? Os outros são os cobardes, são que se estagnam e se deixam afundar na pr