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Mensagens

A mostrar mensagens de dezembro, 2016

O dom da palavra

Penso as relações com abertura, sinceridade, frontalidade. Não consigo sustentar amuos, mal-entendidos, palavras por dizer. Sei que às vezes sou bruta nesta forma de agir, que a minha frontalidade fere e incomoda, que às vezes ofende. Mas os silêncios piedosos, as incompatibilidades por resolver e as dores caladas são sempre mais cruéis, porque aquilo que não se verbaliza fica a doer para sempre, a escarafunchar-nos por dentro e ergue muros difíceis de transpor entre o que somos e o que o outro pensa e sente que somos. A palavra, por mais dura que seja, vem dar espaço ao entendimento, à compreensão do outro, à partilha de emoções, ao fortalecimento das relações. Calar a dor não a destrói, pelo contrário, amplifica-a. Fá-la gritar-nos aos ouvidos a sua presença e trá-la à superfície sempre que estamos mais frágeis. Há entendimento sem palavras, que há. Às vezes, esse é o mais forte e profundo, porque prescinde de quase tudo, bastando-nos existir para percebermos o outro e para que

Aridez

Sinto um desapego crescente pelos objectos. Talvez por isso me distancie de tudo o que é compras e o consumismo me aflija tanto... Vai longe o tempo em que havia muito que me fazia falta. Hoje, não sinto falta de coisa nenhuma. Não desejo nenhum presente de Natal ou de aniversário. Nada me encheria as medidas ou ocuparia os espaços que trago vazios. E tenho vários, nos quais os objectos nunca caberiam. Todos os anos, a minha mãe obriga-me a escolher qualquer coisa que me ofereça. Escolho um creme para a cara que não compraria se não mo oferecessem. Há já vários anos que é isso que me cai no sapato vindo dela e me dura o ano certinho de cara apresentável. Ficaram para trás os velhos tempos em que usava produtos de maquilhagem. A base, o batom ou as sombras ainda tenho as da altura do curso de manequim, de há uns 15 anos. Tenho-os ali, dentro de uma bolsinha que nunca uso, para o caso de um dia me apetecer ou precisar. Nunca precisei, nem me apeteceu. Prefiro a cara limpa de gordur

Só para variar

Ando cansada. Tão cansada que não me apetece fazer nada. Só me apetece embrenhar-me no meio da natureza e ficar por lá, embrenhada. Já só me faz sentido olhar o céu, sentir os cheiros que dançam no ar e revolver a terra com as unhas. Tudo o resto me parece falso, inútil, fútil. Não suporto o espírito natalício que me rodeia. Irritam-me as pessoas com a sua caridadezinha natalícia, com a adoração pelas crianças que só vem nesta época, com a falsa solidariedadezinha, com a fome consumista. Irritam-me as pessoas com as suas vidas de aparências e de alegrias exibicionistas. As luzes de Natal que iluminam ruas vazias parecem-me cada vez mais artificiais. Não há gente para elas. E a que há não está realmente lá. As pessoas já não saem, não vivem, não conversam. Fingem que fazem imensas coisas e tiram fotos. Sugam tudo para dentro dos telemóveis e ficam-se por aí. Parece que não há nada para fazer e nunca houve tanto para fazer. Apesar de certos locais se encherem, quem por lá anda, segue

A cama

Sentou-se na beira da cama e descalçou os chinelos um a um. Encostou-os geometricamente lado a lado à parede em frente, mesmo por debaixo da janela. Rodou sobre as nádegas e enfiou as pernas dentro da cama. Abriu o livro, abandonado há já três dias, e retirou o marcador de metal da página 57 que leu por quatro vezes sem reter uma palavra. Desistiu. Voltou a marcar a página 57 e a abandonar o livro por tempo incerto. Deixou-se deslizar para dentro dos lençóis e aninhou-se, como de costume, na posição fetal virado para a esquerda. Fechou os olhos e tentou silenciar os pensamentos. Faltava-lhe o calor do corpo dela a aquecer-lhe as costas. As dobras dos joelhos não tinham o toque dos joelhos dela, as plantas dos pés sentiam a falta dos peitos dos pés dela, o calor da sua respiração na cova que lhe separava os omoplatas já não estava ali para lhe eriçar os pêlos. Faltava o som do ar que saía e entrava nos pulmões dela a um ritmo certo e lhe sossegava as ideias até as calar num sono pro

Ao toque das notificações

Wall-E Há consenso quando se diz que as crianças andam a abusar dos smartphones; que não largam os aparelhómetros e que já quase não socializam umas com as outras. Se nos olharmos ao espelho, por sinal um exercício deveras enriquecedor que devíamos experimentar mais vezes, também nós, pais, abusamos dos smartphones e deixamos que eles invadam a nossa vida e nos roubem o tempo que é dos nossos filhos. Ah, ok, nós temos desculpa, porque é o e-mail do chefe que chegou, ou o da escola dos filhos com o agendamento da reunião de pais, ou porque "postámos" uma coisa muito gira nas redes sociais e precisamos urgentemente saber se os nossos amigos do Facebook ou do Instagram gostaram. Sim, nós temos sempre desculpa. Todos estamos abusivamente ligados ao mundo virtual, de tal forma que praticamente vivemos dentro dele. Transferimos as amizades para um espaço conjunto imaginário que preferimos ao contacto presencial com as outras pessoas. Já não precisamos de ir ao café à noi

Ensino e aprendizagem

Na turma do meu filho há um miúdo repetente que tem 15 ou 16 anos. O meu filho está no 7º ano, o que quer dizer que o miúdo já deve ter chumbado uns três ou quatro anos. No outro dia, dizia-me ele: - Sabes, mãe, acho que se vê quem são os meus professores bons pelas notas do B.? - Então? - Acho que o B. vai ter muito boa nota a Educação Visual e o professor é dos melhores que temos. - Porque achas que uma coisa está relacionada com a outra? - Porque ele consegue estar atento às aulas e faz trabalhos muito bons, ao contrário de nas aulas das outras disciplinas. Esta conversa com o meu filho, fez-me pensar que hoje, o ensino e o sucesso escolar dependem demais da qualidade dos professores. Haver alunos que chumbam vezes sem conta está demasiado nas mãos dos professores porque o sistema de ensino não funciona. Se houvesse uma maior abertura às necessidades, expectativas e características de cada aluno, em vez de se "encarneirar" toda a gente, talvez houvesse menos miúdo