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Mensagens

A mostrar mensagens de julho, 2016

O humor corrosivo é genético

Enquanto arrumava a loiça na máquina, o pequeno corrosivo cá de casa diz-me: - Mãe, sabes, aconteceu uma coisa ainda pior do que a morte do Mário Moniz Pereira?! - Então? - O Benfica perdeu! - E isso é pior do que a morte do senhor? - Claro que sim. Imagina só a quantidade de mulheres que neste momento está a sofrer violência doméstica! Ui!

Música deles

Os óculos do contrabaixista dão um pulo em direcção à ponta do nariz a cada nota tocada na parte mais baixa do instrumento. O guitarrista estende a guitarra para trás com emoção para deixar soltar os sons mais estridentes. Ao fundo, o baterista toca de olhos fechados, vivendo a percussão nos tambores e pratos dentro de si mesmo. O saxofone desce aos joelhos do músico quando a música se torna mais vibrante. No banquinho de cortiça, que dá para a lateral do baterista, o miúdo. Nos seus 12, 13 anos,  numa luta com o sono, esforça-se para manter os olhos abertos e sorver cada gesto do músico dos tambores. Observa atentamente como que a beber cada pancada, cada toque, das baquetas. Em frente ao palco, sentado no sofá de napa que dá o ombro à banda, um homem mais velho. De olhos fechados como os do baterista, coca-cola à frente e dedos a tactearem timidamente por debaixo da mesa ao som da música. O gesto da mão direita do homem repete os dedos do saxofonista na transição de notas que

Ainda o Centro...

Há uns anos, numa outra situação de desemprego, também estive inscrita num Centro de Emprego e a situação era completamente diferente. Tratavam-nos bem, tentavam conciliar as nossas opções com o mercado de trabalho, propunham-nos cursos em vez de nos obrigarem a frequentá-los e não havia as maravilhosas apresentações periódicas. Acredito que muitas das alterações que se têm notado vêm da elevada taxa de desemprego e do número astronómico de pessoas em situações precárias sem fim à vista. Acredito que o factor mais penalizador para os desempregados e para resolução deste problema crescente das sociedades actuais é a falta de empregos generalizada. Desde a Revolução Industrial que a mão-de-obra tem vindo a ser menos necessária, essencialmente pelo desenvolvimento tecnológico e pelo aumento da população (muito devido à evolução da medicina e, por conseguinte, ao aumento da esperança média de vida que é coisa boa, mas que, neste caso, torna a população excedente), já para não falar no n

Centro de quê?

Há mais de um ano que trabalho sem parar num projecto no qual acredito. Trabalho dia e noite, normalmente mais noites do que dias. Ainda não recebi um tostão e já gastei alguns neste projecto. Mas continuo a acreditar nele. Nele e em mim. Porque, apesar de não ganhar um tostão com o meu esforço, não desisti de viver. Porque, ao contrário do que se possa pensar, não vivo para as férias, para festas, para os fins-de-semana. Provavelmente, sou demasiado ambiciosa em pensar em viver para mim todos os dias e em querer fazer aquilo que gosto e viver daquilo que gosto de fazer. Mas, infelizmente, também tenho que comer para continuar a viver. Tenho que vestir e respirar. E, hoje, tudo isso custa dinheiro. Por isso, procuro empregos, envio e-mails e candidato-me a lugares de que não gosto. Porque preciso de subsistir, porque preciso de sobreviver. Porque amo a liberdade e a independência e já vivo há demasiado tempo dependente financeiramente. Tenho 41 anos e não há empregos para velhas com

Desamor

O amor torna-nos maiores. Crescemos à medida que somos capazes de amar. É o amor que nos faz melhores. Melhores amantes, melhores pais, melhores filhos, melhores pessoas. Melhores. O amor não é uma ilusão. É concreto. Vejo um mundo despojado de amor. Cheio de ódio. O ódio está a comandá-lo, a comandar-nos. O ódio e o medo. A vitória no Euro trouxe, junto com a adoração exacerbada aos atletas portugueses, o ódio aos franceses. A selecção francesa foi estraçalhada nas redes sociais. Difamada, mal-tratada. As pessoas quiseram atirar-lhes o "caneco" às ventas. Depois, camuflaram o veneno em ternura pelo menino que consolou o adepto francês, pensando "além de sermos melhores no futebol, também somos melhores em sentimentos. Vêem como somos tão melhores do que vocês, franceses do cara$&/"%?" O mundo e o amor estão em perigo. Atentados terroristas em todo o lado. De repente, odeia-se os franceses e, logo a seguir, tem-se-lhes piedade. Armas e mortes. Tortu

O palco

Do trabalho ligado às redes sociais, da análise de comportamentos e tendências, do meu lugar recôndito na plateia a que assisto às interpretações de um imenso leque de actores, tenho constatado que todos ganhámos um novo palco. Pequeno, é certo, mas suficiente para que encarnemos personagens diárias e fiquemos à espera dos aplausos. No palco da vida somos mais espontâneos, exigentes, verdadeiros. No palco das redes sociais somos actores, plateia e os nossos próprios lobbies. Vivemos à espera da notificação que nos aplaude e gostamos do que é nosso ou a nós diz respeito. Dos presos políticos em Angola e sua libertação, pouco queremos saber. Dos mortos no Bangladesh, dos atentados em Istambul, pouco nos importamos. É lá longe e não nos diz, directamente, respeito. Todos os dias morre gente por aí. Mas se o gatinho do vizinho partiu desta para melhor, atiramos-lhe um "RIP" sentido e choroso. O gatinho como as vítimas do terrorismo em França. Estes, sim, dizem-nos respeito

O meu pai

Lembro-me de, aos 15 anos, ter amigos com pais com idades entre os 50/60 anos. Olhava para eles e pensava "fogo, os pais deles são tão velhos". O meu pai tinha 36 anos quando eu tinha 15 e os dos meus amigos tinham idades próximas da dele agora. O meu pai descobriu esta coisa da parentalidade aos 21. Quando fiz 21, ele só tinha 41, quase 42. Hoje, faz 62 anos e sou eu que tenho 41. A diferença de idades continua a mesma, mas sinto-me mais próxima dele. Mais próxima em idade e mais próxima fisicamente. Somos diferentes e ao mesmo tempo iguais. Discutimos que nos fartamos, porque adoramos uma boa discussão. Um diz preto e o outro diz branco. Raramente, chegamos ao cinzento, porque somos igualmente casmurros. O meu pai esteve longe muito tempo. Tempo demais. Até nas razões do que nos distanciou discordamos. Porém, concordamos que devíamos ter estado sempre mais perto. Em pequena, era incapaz de lhe perdoar a distância. Aceitava-a simplesmente, mas com uma mágoa maior do

Urgência de humor

Descobri que a grande muralha que me separa de muitos outros é a falta de sentido de humor. Comunicar com quem não sabe rir, é-me quase impossível. Pode ser deficiência minha, não excluo de todo essa possibilidade, mas vejo-a como uma falha desses outros. A incapacidade de nos rirmos de nós próprios, das situações e até das outras pessoas é penosa, porque nos impede de elevar o espírito a níveis de sarcasmo hilariantes. Aprendi o humor com um ex-namorado da minha mãe. Apareceu-me numa altura da vida em que eu ainda absorvia tudo e absorvi-lhe o humor. Por vezes, cansada de tanto rir, por vezes desejando que falasse um bocadinho a sério, mas absorvendo-lhe sempre a capacidade de perverter qualquer assunto. Aprendi isso com ele e muito mais. Na verdade, foi-me pai muitas vezes e continua a ser um pilar na orientação estratégica da minha vida. Talvez por isso, o humor me seja tão necessário. Talvez me ajude a orientar os pontos cruciais das questões que me vão aparecendo a cada esquina

Excursão aos terrores escondidos

Para viajar por dentro e reviver terrores, basta um clique. Ir de encontro aos dias em que a nossa vida se pendurava por um fio, em que vida dos nossos se segurava em suspenso. Pode estar nas paredes de edifícios, em caras de gente, em cheiros. Vira-nos do avesso o aroma a terra molhada, o vento na cara, ou a relva cortada de fresco. Os sons, os percursos, as palavras abrem feridas e doem. Excursionamos nos medos que nos levam aos terrores, como se lá morássemos ainda. E moramos. Vivemos em batalha com as nossas aflições. Mas tentamos enganá-las a maior parte do tempo. E só nos enganamos a nós próprios, porque elas estão lá, cravadas bem no fundo. À mínima corrente de ar, soltam-se e provocam-nos tempestades na alma.  E os dias voltam a ser curtos ou longos demais. A medida certa não se revela e ficamos à espera que a tempestade termine. Eternamente.