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De Onde Veio Essa Cor?

O homem de auricular no ouvido dá uma tossidela de tempos a tempos.
Cof cof!
E o som das agulhas da mulher que faz um casaquinho em tons de rosa, branco, azul e amarelo enche a sala. Vai mudando a cor da lã consoante a risca que tricota. Como fará ela aquilo? Muda de novelo ou é a lã que vai mudando de cor? Fico a tentar perceber. Mas mal desvio o olhar: outra cor. E o homem mexe-se e volta a tossir.
Cof cof!
Outra mulher, que está duas cadeiras adiante de onde ele se encontra, remexe o saco de plástico com medicamentos. Tira uns, volta enfiá-los no saco. Tira outros.
Tumbas, outra cor! Mais uma vez distraída e deixei passar a troca. Tricota agora a branco. Vai ficar lindo aquele casaquinho. Será para o neto? Para a neta? Para venda?
"Senha C 10 à sala de tratamentos!" E lá vais tu. Aproveito a tua ausência para tentar apanhar a mudança de cor. É agora! Não há nada que me desatente.
Oh, porra, de onde saiu esse amarelo? A senhora olha-me desconfiada. Não tiro os olhos das agulhas. Ah, não, ela nem pense que me vou distrair com o olhar de má que me deita. Vá, tricota, tricota, não pares. É agora. Sei que é este o momento.
Cof cof!
Não, não olho para ti, tosse à vontade que agora ninguém me distrai, nem que te vomites todo olho para ti. Esta cor é minha, esta cor é minha...
"Vamos embora? Já estou pronta!", dizes-me. "Sim", respondo-te de soslaio para não perder a troca.

Merda, de onde veio esse rosa?!

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