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Grito de Alerta

Guardei a vontade dentro de uma lata de atum, cuja pega, que permite abri-la, se partiu.
Tenho vivido num estado de embriaguez induzido, tenho fingido, sim fingido, que está tudo bem, que sou eu que estou aqui. Mas não está, não sou. 
A minha vida tem sido uma farsa, da qual não tenho conseguido sair. Arrasto os dias, que deixo passar, sem me aperceber se realmente existiram. A vontade de correr e não parar mais é enorme, mas não corro, sigo devagar, tão devagar que me sinto parada, petrificada na minha inacção.

E olho a vontade, dentro da lata... E a pega partida...

Evito o espelho que reflecte aquela que não sou, aquela que criei num intenso impulso de medo, medo de mim e de me ver. E fujo, escondo-me do meu olhar recriminador para não me detestar mais.
Mas continuo a odiar-me em silêncio, nos poucos momentos de lucidez que me assaltam. Aí, as lágrimas teimam em soltar-se dos meus olhos, prendo-as, prendo-as com força para que não me dêem a impressão, com a sua frescura e sabor salgado, de que estou viva. Prefiro sentir-me moribunda, do que encarar aquela ponta de mim, que espreita do espelho.

E a vontade ali, na lata... E a pega partida...

Só o amor, daqueles que conhecem a minha essência, me salva, me desperta deste estado comatoso que me persegue. Não fosse ele, já me teria perdido neste labirinto de desenganos...

Hoje, num encontro a sós com aquela que tenho escondido de mim, olhei o espelho pelo canto do olho, vi alguém que não conheço, mas observei mais atentamente e eu estava lá, no fundo dos olhos, mas lá.

Dei o grito de alerta. Gritei tão alto, que quase ensurdeci. E olhei para a lata, com a vontade lá dentro, sem pega, sem abre-latas, sem escopro e sem martelo...
Cravei-lhe os dentes com toda a força que tinha. "Foda-se, hoje, vais abrir, nem que eu parta os dentes, nem que corte os lábios e me esvaia em sangue. Prefiro esvaziar-me de sangue, do que esvaziar-me de mim!". E a vontade saiu, saiu em força numa erupção de liberdade. Hoje, dei-lhe asas e deixa-a voar. Percorri a vida que tenho andado a viver, fiz uma retrospectiva da hibernação e não gostei nada do vi.
Descobri, naquele encontro a sós com o meu eu, que a vida não é a capa que me tem escondido...

A vida... a vida é o ar que nos entra pelas narinas a dentro, é a chuva que nos encharca o cabelo, é os raios de sol que nos ferem os olhos, é o vento que nos despenteia o cabelo e alma, é o horizonte que se afasta a cada passada, é o amor que nos desperta e que nos ferve nas veias, e é essa vontade que deixamos, adormecida, dentro da lata...
Mas essa... essa, eu hoje fui buscá-la.

Comentários

  1. Como compreendi as tuas palavras. Como já senti algo semelhante. Mas pegando um pouco na ideia que construiste, deixa-me dizer-te que também já percebi que a vida por vezes é ar que nos entra pelas narinas dentro e nos invade do melhor aroma, é a chuva que refresca um calor intenso, é os raios de sol que recarregam as nossas baterias, é o vento que nos sopra ao ouvido palavras de esperança, é o horizonte que se exibe como uma conquista, é o amor que nos desperta e nos ferve nas veias como tão bem dizes.

    Acredito que "aquela" que cativas, está protegida dentro do coração. Dá-lhe liberdade, deixa-"a" fluir ser livre e arriscar a ser feliz, Muito feliz!

    É só um desejo que te deixo...

    Bom fim-de-semana, Mummy!

    Beijos

    ResponderEliminar
  2. Benedita,
    E fui isso mesmo que fiz hoje. Abri a lata e deixa-a sair. Saiu a vontade de ser eu outra vez e de me libertar da outra que criei.
    Beijinhos, Benny!
    <3

    ResponderEliminar
  3. Confesso que me supreendeu essa analogia da lata de atum, simplesmente brilhante, é que todos temos dias assim... Mas sem nunca deixar que no fim apreciemos aquele atum!
    Parabéns por este e pelos outros textos que li até agora. Os restantes vou ir lendo.

    ResponderEliminar
  4. João de Matos,
    Obrigada. Fico feliz que goste do que escrevo.
    Benvindo a este cantinho! Sinta-se à vontade!

    ResponderEliminar

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