Avançar para o conteúdo principal

Fumar um cigarro à janela das lembranças

Tenho mortos que não morrem. Ficam para sempre comigo. Vou visitá-los às memórias, como quem vai à gaveta das recordações. Quando tenho saudades, abro a janela das lembranças e visito-os dentro da minha cabeça.

Os meus mortos não me são necessariamente próximos. Alguns nunca mais vi. Seguiram vidas longe e perdi-lhes o rasto até saber que morreram. Mas sabia-os lá, em qualquer sítio, e isso chegava-me. Depois morreram e começaram a fazer-me muita falta. O lugar que lhes tinha destinado dentro de mim teve de mudar repentinamente. Da lembrança suave e sossegada passei-os para um quarto de memórias cheio de vazios. Cheio de vazios... Custa-me mantê-los aqui, porque o espaço se torna demasiado grande e as recordações repletas de histórias e vida passam a ficar cheias de vazios. Há bocados que lhes faltam, porque há pessoas a menos. 
Tento constantemente ocupar os espaços em branco com os meus mortos, construindo segmentos das suas vidas em mim, numa tentativa vã de os ressuscitar. Claro que não os ressuscito, porque continuam mortos, mas há vida deles que perdura dentro de mim. E assim imortalizo-os. Ou assim creio que o faço... 

Há tempos descobri que uma senhora para quem trabalhei quando estive na Bélgica morrera. Fiquei muito triste. Continuo muito triste. Ela não era das pessoas a quem é consentida a morte. (Apesar de ser normal, mais cedo ou mais tarde, a senhora morrer, visto eu ter lá estado há uns 15 anos e a ela ter perto dos 60 anos nessa altura). Mas não a consigo matar dentro de mim... Continua tão viva como quando lá estive. Renasceu até... Desperto-a quase todos os dias e sinto-lhe a falta como se me tivesse deixado há pouco tempo.

Ainda lhe consigo ver os movimentos: ela bebia imenso chá preto e vinha fumar às escondidas do marido para o pé de mim. Tínhamos uma cumplicidade engraçada, já que era o tabaco que mais nos unia. Éramos cúmplices no fumo e nos cigarros e isso fez nascer uma amizade. Comprava pacotes de dez maços de tabaco e trazia-mos. Também gostava imenso de flores e ia buscá-las a uma feira na Holanda, que era mesmo ali ao lado. 
Um dia tentei ir de bicicleta sozinha à Holanda, mas desisti a meio. Fartei-me de pedalar, sem nunca mais lá chegar, cansei-me. Voltei para trás a meio do percurso. Penso que foi a meio... nunca tive a certeza, pois nunca cheguei a arriscar a meter-me ao caminho de novo.

Lembro-me bem dos cavalos da senhora e da estufa com a plantação de tomates que eu regava ao mesmo tempo que comia os tomates. Eram bons os tomates daquela estufa. Já naquele tempo, a senhora gabava-se de os seus tomates não terem produtos químicos... (Ainda os portugueses andavam a aprender o significado de agricultura biológica, já os belgas a praticavam religiosamente).
Havia um cavalo Andaluz que mordia se não lhe enfiássemos cenouras goela abaixo enquanto o levávamos do paddock para boxe e vice-versa. Ainda tentei ensiná-lo a não morder, mas acabei por desistir. Ia ser um longa guerra com ele e não iria durar, já que toda a gente preferia dar-lhe as cenouras. Também eu continuei a enfiar-lhe as cenouras goela abaixo durante o percurso. Tinha de ser rápida e não parar de lhe encher a boca ou ele acabava por me comer os dedos.

A senhora era gira: loira, magra e muito bronzeada. Bronzeada demais talvez... Tinha umas mãos que pareciam uns troncos. Nunca vi mãos como as dela. Os dedos eram grossos como os de um homem, secos e fortes. Ensinou-me a fazer a trança corrida nas crinas dos cavalos com aqueles troncos enormes... Enrolava as crinas entre os dedos e passava-as de um lado para outro com uma agilidade espantosa para uns dedos tão grossos. Segurava o cigarro entre os dentes e explicava, no seu inglês afrancesado, pelo canto da boca livre como se fazia a trança. Era incrível como ela fazia tudo de cigarro entre os dentes! Não parava para fumar como eu que gostava de saborear o cigarro sem distracções. Ela corria de um lado para o outro como se o dia não lhe chegasse para tudo. E fumava sempre que o marido virava costas, e fumava cigarro atrás de cigarro, antes que ele voltasse.
Tenho saudades de fumar um cigarro com ela... 

Pena os mortos e eu termos deixado de fumar, ou iríamos, as duas, fumar um cigarro à janela das lembranças... Enquanto ela corria de um lado para o outro, eu iria sentar-me no parapeito da janela e, ali, poríamos a conversa em dia.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Vejam só o que encontrei!

Resumindo :  Licenciatura em marketing (um profissional certificado); Gosto pela área comercial (amor cego que se venda barato);  De preferência, recém-licenciado (cabeça fresquinha e sem manhas); Com vontade de aprender (que aceite, feliz, todas as "óptimas" condições de trabalho que lhe oferecem, porque os ensinamentos não têm preço); Disponibilidade imediata (já a sair de casa e a arregaçar as mangas);  Carta de condução (vai de carro e não seguro, como a Leonor descalça do Camões);  Oito horas de trabalho por dia e não por noite (muito tempo luminoso para aprender, sem necessidade de acender velas). Tudo isto, a troco de: Um contrato a termo incerto (um trabalho p'rá vida); 550€ / mês de salário negociável (uma fortuna que pode ser negociável, caso o candidato seja um ingrato); Refeições incluídas (é melhor comer bem durante as horas de serviço, porque vai passar muita fominha a partir daquela hora do dia em que tiver de

O engano

O meu homem, enquanto estende a roupa (sim, cá em casa a roupa é cena dele. Somos estranhos, eu sei!), ouve música. Aliás, ele ouve sempre música, mas hoje, enquanto estava a ouvir música e a estender a roupa e eu a arrumar a loiça do almoço (sim, apesar do moço tratar da roupa, eu também faço umas coisitas cá por casa. Sim, eu sei, parece que somos mesmo estranhíssimos!), pôs os Pink Floyd a tocar. Ao som dos Pink Floyd, comecei a pensar que hoje há pouca cultura que faça as pessoas pensarem como por exemplo os Pink Ployd faziam; que conteste os poderes; que ponha em causa as ditas verdades universais; que cause indignação e contestação. Vivemos na sociedade do engano. Julgamos que temos liberdade, quando somos nós mesmos que restringimos a liberdade, calando-nos. Já não defendemos causas, mandamos umas bocas e ficamo-nos por aí. Os poderes estão instituídos e aceitamo-los, pura e simplesmente, sem um ai realmente sentido. Encolhemos os ombros e distraímo-nos com outras coisas par

Apneia

 Sempre esta coisa da escrita... De há uns anos para cá tornou-se uma necessidade como respirar. Tenho estado em apneia, eu sei. Não só, mas também, porque veio a depressão. Veio, assim, de mansinho, como que para não se fazer notar, instalando-se cá dentro (e cá fora). Começou por me devorar as entranhas qual parasita. Minou-me o corpo e o cérebro, sorvendo-me os neurónios e comendo-me as ideias, a criatividade e a imaginação. Invadiu-me a mente e instalou pensamentos neuróticos, medos, temores, terrores até. Fiquei simultaneamente cheia e vazia. E a vontade de me evaporar preencheu-me por completo, não deixando espaço para mais nada. Não escrevia há meses. Sinto-lhe a falta todos os dias. Mas havia (há) um medo tão grande de começar e só sair merda. E, no entanto, cá estou eu a escrever de novo. Mesmo que merda, a caneta deslizou sobre o papel e, agora, os dedos saltam de tecla em tecla como se daqui nunca tivessem saído. O olhar segue os gatafunhos, o pensamento destrinça frases e e

Dos blogues

DAQUI Comecei isto dos blogues faz tempo. Mais precisamente em 2011. Faz tanto tempo que este menino aqui já completou cinco anos em Agosto. Há cinco anos e picos que venho para aqui arrotar as minhas postas de pescada. Primeiro, em núpcias das delícias da maternidade; depois confrontada com o fim das núpcias; hoje, com a consciência de que a maternidade se expande por tudo o que é lado da vida da gente. Nunca, mas mesmo nunca, tentei tornar este blogue num lugar cuchi-cuchi, fofinho e queridinho. Este lugar não é de todo fofinho. Não há por aqui adoçantes da vida, nem marcas a embelezar o que se passa por dentro e por fora da minha experiência enquanto mãe, ou enquanto pessoa, ou até mesmo a comandar o que escrevo. Não me deixo limitar por "politicamente correctos" ou estereótipos que atentem contra a minha liberdade na escrita. Escrevo o que me dá na real gana, quando me dá na real gana. Em tempos, cheguei a ter por aqui uma publicidade, mas nada que me prendesse

Tenho uma tatuagem no meio do peito

Ontem, no elevador, olhei ao espelho o meu peito que espreitava pelo decote em bico da camisola, e vi-a. "Tenho uma tatuagem no meio do peito", pensei. Geralmente, não a vejo. Faz parte de mim, há dez anos, aquele pontinho meio azulado. Já quase invisível aos meus olhos, pelo contrário, ontem, olhei-a com atenção, porque o tempo já me separa do dia em que ma fizeram e me deixa olhá-la sem ressentimentos. À tatuagem como à cicatriz que trago no pescoço. A cicatriz foi para tirar o gânglio que confirmou o linfoma. Lembro-me do médico me dizer "vamos fazer uma cicatriz bonitinha. Ainda é nova e vamos conseguir escondê-la na dobra do pescoço. Vai ver que quase não se vai notar". Naquela altura pouco me importava se se ia notar. Entreguei o meu corpo aos médicos como o entrego ao meu homem quando fazemos amor. "Façam o que quiserem desde que me mantenham viva", pensava. "Cortem e cosam à vontade! Que interessa a estética de um corpo se ele está a morrer