- Estás cada vez mais bonita. - disse-me em voz trémula aquele pedaço do que um dia foi a minha tia-avó.
Mirrada pela fragilidade que a vem atacando faz tempo, reduzida a uma cama com colchão anti-escaras, olhei-a numa tentativa de a ver como dantes. Tenho por hábito tentar não ver a decadência nas pessoas de quem gosto. Fi-lo com o meu avô; fi-lo com a minha mãe quando esteve um farrapo atacado pelos cancros; fi-lo com o meu filho quando confinado àquela cama de Santa Maria e fi-lo agora com a "tuzinha".
- Estás cada vez mais bonita.
E um punhado de ossos dentro de uma camisa de noite. E a vontade de lhes tocar e senti-la inteira. Sou pouco dada a tocar nas pessoas, mas às vezes apetece-me chegar-lhes.
Arranjo-lhe o cabelo com a desculpa de que está desalinhado.
- Realmente o dinheiro faz milagres... Tratam-nos diferente quando pagamos...
Vem-me à cabeça a falta que lhe faz um pirilampo mágico na cabeceira da cama. Como o que o meu filho teve no hospital. O deste ano é rosa. Vamos comprar-lhe um para a curar das doenças e depois juntar à colecção que guarda no armário do escritório. Amanhã, já o compramos.
- No hospital só faltou baterem-me...
Entram e saem pessoas da sala e nós ficamos. Ela presa à cama e eu presa à memória dela.
- E a neve fechou os olhinhos...
- A neve não tem olhos!
- Chop, chop, chop, faz o cãozinho...
Cheira-me ao teu café da manhã. Cheira-me muitas vezes ao teu café da manhã, tiazinha.
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Vá lá, digam qualquer coisinha...
...por mais tramada que seja...